Filho único e temporão, Zulmiro Bento da Costa Pereira recebeu duas heranças. Foram, ao todo, oito quadras de campo, pastagem por natureza e povoadas de gado pampa e ovelha corriedale. A sede da fazenda era um "brinco", com piscina de azulejo e sala com teto de gesso rebaixado. Só de churrasqueira tinha três espalhadas pelo estabelecimento, fora a mais rústica que ficava atrás do galpão, onde a peonada costumava estaquear um chibo inteiro pra assar sem pressa, na manha, como quem dança valsa de luto fechado.
Mas, seguindo o mesmo fadário dos que não souberam preservar o legado adquirido com sacrifício pelos troncos ancestrais, botou tudo fora em pouquíssimas primaveras.
Mais pro fim da vida, atacado pela peladura, Zulmirinho achacava quem encontrasse pela frente, pedindo dinheiro pra pagar a conta da água, da luz, além da alegada compra do litro de leite, que se transmudava em cachaça na caderneta do armazém.
Pois estava o nosso amigo na espreita de um bolso alheio, na porta do Bar do João Circuiti, quando apareceu o Herondino Machado, juiz de paz no interior de Restinga Sêca, com o propósito de assinar o ponto na centenária roda de aperitivo. Zulmiro esperou ele secar o segundo martelinho de canha com abacaxi e chamou a futura vítima para um particular:
- Bah, tô numa braba, Heron velho de guerra. Os homens da CEEE deixaram aviso debaixo da porta de que vão me deixar no escuro. Preciso de 50 pila, pra ontem!
Herondino, antes de emprestar o dinheiro (doar seria o termo mais correto), partiu indagativo para cima do postulante da pecúnia:
- Escuta aqui, Zulmirinho, me mata uma curiosidade: o que tu fizeste das duas heranças recebidas?
- O troço é meio encaroçado, mas te explico o que aconteceu com o patrimônio dos velhos. Quando recebi o campo do papai, recém tinha me desquitado da Verônica. Sabe como é! O cara desmulherado cai na farra e acaba gostando da fuzarca. Era cabaré num dia, carteado no outro e cancha reta no domingo. Na outra semana, só invertia a ordem dos fatores e de novo botava calando, sem folga pro pastor da manada.
Após uma pausa, fez que ia embora, deu um giro sobre o garrão direito e fechou um desfiado para acrescentar:
- Também meti cavalo puro sangue inglês em cocheira da hípica e montei casa na Vila dos Patriotas pra rapariga Priscilla, que tinha por hábito gostar só de loja fina e de restaurante atipado. No entremeio, não posso negar que sempre fui tarado pelo jogo do osso, e dei pra me viciar na roletagem do Cassino de Rivera, onde manobrava forte que nem arroto de corvo. Ia me esquecendo do patrocínio de um time de bocha e outro de futebol de veteranos, quase tudo jogador de fora, uns mitigal, que só vinham a peso de dinheiro. Ah, ainda tive a honra de ser indicado, por aclamação, para patrão de um CTG desativado, fui festeiro-mor da Festa do Divino e patrono vitalício do Clube Recreativo Escola de Samba "Não te Atira que é Pura Pedra".
- Tá, mas e a fortuna que a tua mãe te deixou, que fim levou?
- Bah, Heron, nem fala que chega a me cortá o coração. A herança da mamãe (que Deus a tenha na sua volta!) essa, sim, gastei só com bobagem!